
O carioca Guilherme de Souza Ramos criou as páginas “O Fusca por aí” para mostrar a viagem até Ushuaia – e que depois deve seguir para ainda mais longe – a bordo do carro que ele diz que salvou sua vida. / Foto: Brenda Caramaschi
Uma jornada de cura tem guiado Guilherme de Souza Ramos, 47, de Rio das Ostras (RJ) a Ushuaia – o “fim do mundo” – a bordo de um Fusca 1974. Mas a viagem, ele faz questão de dizer, não é turística. É de sobrevivência. Para ele, a estrada virou remédio depois de anos lutando contra uma depressão refratária, um tipo que não responde aos seis ciclos tradicionais de medicação. E foi justamente um Fusca abandonado que o tirou do momento mais desesperador da vida.
Guilherme conta que estava em um de seus piores dias, com uma arma na mão e um copo de uísque, decidido a tirar a própria vida, quando recebeu uma mensagem inesperada de uma amiga que fazia parte de um grupo de amantes de carros antigos. Ela enviou a foto de um Fusca parado havia cinco anos embaixo de alguns coqueiros e disse: “Um desafio para você”. “Eu olhei pro Fusca e senti um estalo. Bebi o resto, guardei a arma e fui dormir. Isso já foi algo diferente: eu só dormia às quatro da manhã. Aquele dia, dormi às onze da noite”. No dia seguinte, ele foi buscar o carro.
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O dono riu quando Guilherme disse que sairia dirigindo. Depois de troca de óleo, velas e uma bateria nova, o motor fumaceou… E funcionou. “Quando entrei na Dutra com ele andando, parecia que eu tinha comprado uma Ferrari zero. Chorava, gritava, ria… Me senti vivo de novo”, relembra.
Sargento da Polícia do Exército, Guilherme serviu em Angola em 1996 e no Haiti em 2005 e 2010, locais marcados por fome, confrontos, doenças, terremoto e mortes. “Era resgate de corpos, gente morrendo sem água, sem remédio. Perdemos 18 militares. Voltei traumatizado”, conta. “Quando a psiquiatra me disse ‘depressão refratária’, pensei, ‘eu, ponta de lança, preparado para tudo, perder para um inimigo que tava dentro da minha cabeça?’”, diz ao relatar como recebeu o diagnóstico. A longa viagem dentro do Fusca, que virou casa sobre rodas, foi a válvula de escape que ele encontrou para lutar contra a depressão. “Acertei em cheio no remédio”, diz, contando que não teve mais recaídas e que os sintomas melhoraram muito após dar início à jornada.
A viagem que virou missão
Ele começou a relatar a jornada pelas redes sociais sem pretensão, apenas para dividir a descoberta dessa “válvula de escape”, para mostrar a outras pessoas que sofrem com a depressão que é possível buscar outras formas de estímulo que despertem a vontade de viver. “Se uma pessoa sair do quarto e procurar a válvula de escape dela, seja pintando, seja pedalando, seja malhando, escrevendo um livro, ou pegando um carro velho e saindo pela estrada também que nem eu, mas se uma pessoa se salvar já vai valer a pena”, diz. Mas o que começou timidamente, ganhou força rápido: três semanas depois de pegar estrada, ele já tem 11 mil seguidores. Vídeos de outros viajantes impulsionaram sua história, e a identificação é imediata: dezenas de pessoas com ansiedade e depressão mandam mensagens todos os dias. “Quando a noite vem e eu sinto que o monstro tá chegando, eu leio essas mensagens. Isso me segura”, confidencia.
Guilherme saiu do Rio sem dinheiro. Para bancar a viagem, faz polimento de farol por onde passa e recebe doações pequenas, de R$ 5, R$ 10, R$ 20 e, às vezes, grandes. Ele conta o episódio que considera sua maior prova de fé na viagem até agora, vindo da Serra das Araras. “Eu tinha 98 reais. Pedi a Deus só mais um farolzinho para fazer, para chegar na feira de campismo. Um motorista viu minha chave Pix no para-choque e me fez um Pix. Quando carreguei o celular para ver… eram mil reais. Uma hora depois a suspensão traseira do meu carro arriou e o conserto deu R$898. E eu estava com o dinheiro na conta para pagar”, conta emocionado.
Não são raros os seguidores que têm oferecido presentes – e foi assim que Guilherme e o fusca amarelo vieram parar em Maringá. Uma empresa da cidade que fabrica geladeiras portáteis para motorhomes ofereceu uma ao viajante e ele veio à Cidade Canção buscar o equipamento. “Eu dormi no Fusca e almocei com o presidente de uma das maiores empresas do ramo. Deus surpreende”, se diverte.
No fusca, o banco do passageiro foi retirado para virar cama. Na cozinha portátil, um fogareiro prepara café ao amanhecer. O Fusca, que tem caixa dágua e energia própria com painel solar, também ganhado de presente, virou casa completa. Depois de chegar a Ushuaia, na Argentina, a cidade mais ao sul do mundo, ele pretende pegar o caminho para o lado oposto do globo e seguir até o Alasca, inspirado em Jesse Koz, viajante que também percorria o mundo em um Fusca ao lado do cachorro Shurastey e que morreu em um acidente em 2022, antes de chegar ao destino. “Eu conheci o Jesse, conheci o pai dele, e quero completar esse caminho. A estrada é minha casa agora. Se eu não for, eu vou voltar pro copo de uísque. E eu não quero aquele lugar. Eu não quero voltar para aquela escuridão”, diz.
Questionado sobre o que mudou desde a partida, Guilherme enumera: “meu sono, minha alegria… A camada de pedra que tinha no meu coração tá rachando. Eu tô conhecendo pessoas boas, recebendo abraços que ainda são estranhos pra mim”, relata, dizendo que tem vergonha de dar entrevista e que gravar vídeos para as redes é um desafio diário pela exposição. Mas completa, com o Fusca estacionado em frente à Catedral de Maringá: “se com essa matéria uma pessoa decidir sair do quarto e viver um pouco a vida, já valeu a pena”.
Para quem convive com a depressão, ansiedade ou outros transtornos mentais, o viajante deixa o recado. “Acorda dizendo que seu dia vai ser maravilhoso. E vai ser. Mas você tem que acordar acreditando. Se você acreditar, você consegue. Não vai ser fácil. Eu ainda estou aprendendo, tenho medo, mas olha quanta coisa bonita você tem para ver por aí. Tem gente que mora numa rua e não sabe o que tem na outra rua do lado. Porque sai do trabalho, vai pra casa, entra, dorme, acorda, vai pro trabalho. São coisas que a gente vai levar, o que a gente viveu, o que a gente conheceu, o que a gente ouviu, o que a gente sentiu, o que a gente comeu. Tenta achar sua válvula de escape, mas não baixa a guarda para essa doença. E pra quem não tem depressão, eu só peço que vocês ouçam mais. A gente só quer ser ouvido. A gente não quer ser julgado, a gente não tá endemoniado. Não é fase, não é frescura, é uma doença que mata. Eu fui salvo por um fusca, mas eu tenho que persistir nessa salvação”, finaliza.
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